08 setembro 2008

Family Autopsy - Parte 1

Helena era uma criança mirrada, aquelas pra quem as mães preparariam língua ou bifes de fígado. Se fosse hoje, dariam achocolatados feitos especialmente para que seu filho tenha fome de.... urso. Mas, nos anos 50, o que se usava mesmo era uma bela mamadeira cheia de leite, ovos crus e açúcar, do jeitinho que qualquer criança a-do-ra. E a gente fala das cicatrizes que nossos pais nos causam, achando os nossos avós adoráveis. Não foi a primeira nem a última filha; não era a mais bonita, mas também não era feia; nem a mais inteligente era. Helena chegou ao mundo já atrás no placar que a gente mantém com a vida, como se fadada a uma mediocridade de horóscopo. Estava sempre em terceiro lugar, medalha de bronze.


Como toda criança comum, Helena não se lembra de seus primeiros aniversários. Mas não vai se esquecer nunca do 7º, já que seu irmão mais novo nasceu 20 dias antes dele. A comoção familiar denunciava todo o descaso com uma terceira filha, que só por ser filha, já vinha em desvantagem. Como aqueles produtos que compramos em outlets: com a costura defeituosa ou uma pequena manchinha que derrubam o preço pela metade e que, por isso, sempre ficam num lugar de menor destaque no guarda-roupas. Helena era uma calça de barra malfeita.


Rafael, por outro lado, chegou já com o reinado pronto para a coroação. Tanto fez no parto que deixou a mãe de cama por um mês. Com 2 anos, algum charlatão decidiu que deveriam retirar suas amídalas. A cirurgia foi tão bem feita que o excesso de anestesia o deixou molhando a cama até os 10 anos de idade. Nada mais simbólico. Toda noite a mesma novela se repetia, por anos: ele se levantava e ia até a “babá”/ “empregada”, que pacientemente trocava-lhe o pijama, os lençóis e o acolhia na cama. Às vezes dizia para a mãe, que acordava impaciente: “mas mãe, foi só uma rodinha!”, olhando discaradamente para uma poça amarela que secava no calor de setembro.


Era também folgado, preguiçoso e malandro. Daquelas crianças que aprontam e têm a cara de anjo caído. Negava tudo até a morte, mas todo mundo bem sabia o que Rafael fazia.


Pois no aniversário da irmã, com 20 dias, ele já mostrou para quê tinha nascido. A mãe, ainda de resguardo, se lamuriava na cama, enfornada num quarto escuro e abafado. As aleluias rondavam e deixavam suas asas num cemitério nojento que se formava no chão. O “parabéns pra você” tinha trilha sonora das cordas vocais de Rafael, que incessantemente berrava. E o pai só reclamava que tinha que voltar pra loja. Uma cena quase fúnebre. Helena comemorou seus sete anos aos pés da cama da mãe que dizia estar à beira da morte, ao lado do irmão histérico e do pai ríspido que só queria mesmo acabar logo com aquilo.


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